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Chris Hedges

Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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Os lordes do caos

Os políticos e seus cúmplices nas mídias que orquestraram 20 anos de fiascos militares no Oriente Médio devem ser responsabilizados pelos seus crimes

Arte de Mr. Fish 'Nós Somos Número Um' (Foto: Mr. Fish)
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Artigo de Chris Hedges originalmente publicado no website do autor em 19.03.23. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o 247

Há duas décadas, eu sabotei a minha carreira no The New York Times. Foi uma escolha consciente. Eu havia passado sete anos no Oriente Médio, quatro deles como Chefe do Bureau do Oriente Médio. Eu falava árabe. Como quase todos os arabistas, incluindo a maioria destes no Departamento de Estado e na CIA, eu acreditava que uma guerra “preventiva” contra o Iraque seria o erro estratégico mais caro da história estadunidense. Isto também constituiria aquilo que o Tribunal Militar Internacional de Nüremberg chamou de um “crime internacional supremo”. Enquanto os arabistas nos círculos oficiais estavam amordaçados, eu não estava. Fui convidado por eles para falar no Departamento de Estado, na Academia Militar dos EUA em West Point e para os oficiais do Marine Corps que estavam programados para serem alocados no Kuwait para se prepararem para a invasão.

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  A minha visão não era popular, nem uma que era permitido a um repórter, ao invés de um colunista de opinião, de expressar publicamente, segundo as regras determinadas pelo jornal. Mas eu tinha uma experiência que me dava credibilidade e uma plataforma. Eu havia reportado extensivamente do Iraque. Eu havia coberto numerosos conflitos armados, incluindo a primeira Guerra do Golfo e o levante Xiita no sul do Iraque, onde eu fui preso pela Guarda Republicana Iraquiana. Eu desmantelei facilmente a loucura e as mentiras usadas para promover a guerra, especialmente porque eu havia reportado a destruição dos estoques de armas químicas e as instalações do Iraque realizada pelas equipes de inspeção da Comissão Especial das Nações Unidas (UNSCOM – United Nations Special Commission). Eu tinha conhecimento detalhado de quão degradadas as forças militares iraquianas se tornaram sob as sanções dos EUA. Além disso, mesmo se o Iraque possuísse “armas de destruição de massa”, isto não seria uma justificativa legal para uma guerra.

 As ameaças de morte contra mim explodiram quando a minha posição se tornou pública em numerosas entrevistas e falas que eu dei no país todo. Estas eram enviadas por correio por escritores anônimos, ou eram expressadas ao telefone por pessoas iradas que lotavam o banco de mensagens do meu telefone com tiradas cheias de ira. Os shows de conversas de direita, incluindo a Fox News, me expunham ao pelourinho, especialmente depois que eu fui questionado e vaiado numa cerimônia de formatura no Rockford College por denunciar a guerra. O Wall Street Journal escreveu um editorial em que matasse as suas carreiras. Ameaças de bombas foram feitas em locais onde eu estava programado para falar. Eu me tornei um pária na redação. Repórteres e editores que eu conhecia há anos baixavam a cabeça quando eu passava, temerosos de qualquer contágio que matasse as suas carreiras. Me deram uma reprimenda por escrito no The New York Times para parar de falar em público contra a guerra. Eu me recusei. Meu mandato tinha acabado.

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  O que é perturbador não é o que isto me custou pessoalmente. Eu tinha consciência das potenciais consequências. O que é perturbador é que os arquitetos destes fiascos nunca tenham sido responsabilizados e permaneçam abrigados no poder. Eles continuam a promover a guerra permanente, incluindo a atual guerra por procuração na Ucrânia contra a Rússia, bem como uma futura guerra contra a China.

 Os políticos que nos mentiram – George W. Bush, Dick Cheney, Condoleezza Rice, Hillary Clinton e Joe Biden, só para mencionar alguns -extinguiram milhões de vidas, incluindo milhares de vidas de estadunidenses, e deixaram no caos o Iraque, junto com o Afeganistão, a Síria, a Somália, a Líbia e o Iêmen. Eles exageraram ou fabricaram conclusões de relatórios de inteligência para enganar o público. A grande mentira é tirada dos manuais de regimes totalitários.

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 Os animadores de torcida da guerra nas mídias - Thomas Friedman, David Remnick, Richard Cohen, George Packer, William Kristol, Peter Beinart, Bill Keller, Robert Kaplan, Anne Applebaum, Nicholas Kristof, Jonathan Chait, Fareed Zakaria, David Frum, Jeffrey Goldberg, David Brooks e Michael Ignatieff – foram usados para amplificar as mentiras e desacreditar os poucos de nós, incluindo Michael Moore, Robert Scheer e Phil Donahue, que nos opúnhamos à guerra. Estes cortesãos muitas vezes eram motivados mais por carreirismo do que por idealismo. Eles não perderam os seus megafones, ou seus lucrativos honorários e contratos de livros uma vez que as suas mentiram foram expostas, porque os seus ataques loucos não importavam. Eles serviram aos centros de poder e foram recompensados por isso.

 Muitos destes mesmos especialistas estão empurrando a escalada da guerra na Ucrânia, apesar de que a maioria deles sabe tão pouco sobre a Ucrânia ou a provocativa e desnecessária expansão da OTAN até as fronteiras da Rússia, quanto eles sabiam sobre o Iraque.

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 “Eu contei para mim mesmo e para outros que a Ucrânia é a estória mais importante dos nossos tempos, que tudo sobre o que nós deveríamos nos importar está na linha lá”, George Packer escreve na revista The Atlantic. “Eu acreditava nisso então, e acredito agora, mas toda esta conversa dá um lustro agradável no desejo simples e injustificável de estar lá e ver”.

 Packer vê a guerra como um laxante, uma força que sacudirá um país, incluindo os EUA, de volta aos seus valores morais centrais que ele, supostamente, encontrou nos voluntários estadunidenses na Ucrânia.

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 “Eu não sabia o que esses homens pensavam sobre a política estadunidense e eu não queria sabê-lo”, ele escreve sobre dois voluntários estadunidenses. “Nos EUA, nós poderíamos ter discutido; nós poderíamos até odiar uns aos outros. Aqui, nós estamos unidos por uma crença comum no que os ucranianos estavam tentando fazer e por uma admiração de como eles o estavam fazendo. Aqui, todas as complexas lutas internas e os desapontamentos crônicos e pura letargia sobre qualquer sociedade democrática, mas especificamente a nossa, se dissolveram; e as coisas essenciais – ser livre e viver com dignidade – se tornaram claras. Quase parecia como se os EUA tivessem que ser atacados, ou passarem por alguma outra catástrofe, para que todos os estadunidenses se lembrassem daquilo que os ucranianos sabiam desde o início”.

 A guerra no Iraque custou pelo menos US$ 3 trilhões e os 20 anos de guerras no Oriente Médio custaram um total de cerca de US$ 8 trilhões. A ocupação criou esquadrões da morte Xiitas e sunitas, alimentou horrorosas violências sectárias, gangues de sequestradores, matanças em massa e torturas. Ela fez surgir células da al-Qaeda e espalhou o ISIS – o qual, em algum momento, controlava um terço do Iraque e da Síria. O ISIS executou estupros, escravidão e execuções em massa de minorias étnicas e religiosa iraquianas, como os Yazidis. Ele perseguiu Católicos Caldeus e outros Cristãos. Esta confusão foi acompanhada por uma orgia de matanças executadas pelas forças de ocupação dos EUA, como o estupro e assassinato da Abeer al-Janabi, uma jovem de 14 anos de idade e da sua família por membros da 101ª. Divisão Aerotransportada do Exército dos EUA. Os EUA engajava-se rotineiramente na tortura e execução de civis detidos, incluindo as realizadas em Abu Ghraib e Camp Bucca.

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 Não existe uma contagem acurada das vidas perdidas; apenas no Iraque, as estimativas variam de centenas de milhares a mais de um milhão. Cerca de 7.000 soldados estadunidenses morreram nas nossas guerras de pós-11/9 (ataques às torres-gêmeas em NYC), com outros 30.000 que cometeram suicídio mais tarde, segundo o projeto sobre os Custos da Guerra (Costs of War) da Universidade Brown.

 Sim, Saddam Hussein foi brutal e assassino, mas em termos de uma contagem de corpos, nós ultrapassamos em muito as suas matanças, incluindo as campanhas genocidas contra os Curdos. Nós destruímos o Iraque enquanto um país unificado, devastamos a sua moderna infraestrutura, acabamos com a sua pujante e educada classe média, demos nascimento à milícias rebeldes e instalamos uma cleptocracia que usa as rendas do petróleo do país para se enriquecer. Os iraquianos comuns estão empobrecidos. Centenas de iraquianos que estavam protestando nas ruas contra a cleptocracia foram fuzilados pela polícia. A maioria Xiita, aliada próxima do Irã, domina o país.

 A ocupação do Iraque, começando há 20 anos nesta data, fez o mundo muçulmano e o Sul Global se virarem contra nós. As imagens duradouras que nós deixamos atrás depois de duas décadas de guerra incluem o presidente Bush para em frente a uma faixa que dizia “Missão Cumprida”  a bordo do porta-aviões USS Abraham Lincoln apenas um mês depois que ele invadiu o Iraque, os corpos dos iraquianos em Fallujah que foram queimados com fósforo branco e as fotos de torturas executadas por soldados estadunidenses.

 Os EUA estão tentando desesperadamente usar a Ucrânia para reparar a sua imagem. Mas espessa hipocrisia de clamar por uma “ordem internacional baseada em regras” para justificar os US$ 113 bulhões de armamentos e outras ajudas que os EUA se comprometeram de enviar à Ucrânia não funcionarão. Isso ignora o que nós fizemos. Nós podemos nos esquecer, mas vítimas não se esquecerão. O único caminho redentor é indiciar Bush, Cheney e os outros arquitetos das guerras no Oriente Médio, incluindo Joe Biden, como criminosos de guerra no Tribunal Penal Internacional. Transladar o presidente russo Vladimir Putin à Haia, mas só se Bush estiver na cela ao lado dele.

 Muitos dos apologistas da guerra no Iraque buscam justificar o seu apoio ao argumentar que foram feitos “erros”; que, por exemplo, se o serviço civil e o exército iraquianos não tivessem sido dissolvidos após a invasão dos EUA, a ocupação teria funcionado. Eles insistem que as nossas intenções eram honrosas. Eles ignoram a soberba e as mentiras que levaram à guerra, a crença equivocada que os EUA poderiam ser a única grande potência num mundo unipolar. Eles ignoram as massivas despesas militares gastas anualmente para realizar esta fantasia. Eles ignoram que a guerra no Iraque foi apenas um episódio nesta busca demente.

 Um acerto de contas nacional com os fiascos militares no Oriente Médio poderia expor a autoilusão da classe dominante. Mas este acerto de contas não está ocorrendo. Nós estamos tentando desejar que os pesadelos que nós perpetuamos no Oriente Médio sumam, enterrando-os numa amnésia coletiva. “A Terceira Guerra Mundial Começa com o Esquecimento”, adverte Stephen Wertheim.

 A celebração da nossa “virtude” nacional ao inundarmos a Ucrânia com armamentos, ao sustentarmos pelo menos 750 bases militares em mais de 70 países e por expandir a nossa presença naval no Mar do Sul da China, são feitos para alimentar este sonho de dominação global.

 O que os mandarins em Washington não conseguem entender é que a maior parte do globo não acredita na mentira da benevolência ou o apoio estadunidense como justificativos para intervenções dos EUA. A China e a Rússia, ao invés de aceitarem passivamente a hegemonia dos EUA, estão construindo as suas forças militares e alianças estratégicas. Na semana passada, a China intermediou um acordo entre o Irã e a Arábia Saudita para reestabelecerem relações diplomáticas após sete anos de hostilidade – algo que uma vez era esperado dos diplomatas estadunidenses. A crescente influência da China cria uma profecia auto-realizável para aqueles que clamam por uma guerra com a Rússia e a China, uma guerra que terá consequências mais catastróficas do que aquelas do Oriente Médio.

 Há um cansaço nacional [nos EUA] com a guerra permanente, especialmente com a inflação devastando as rendas familiares e 57% dos estadunidenses sendo incapazes de pagar uma despesa de emergência de US$ 1.000. O Partido Democrata e a ala do establishment do Partido Republicano, que venderam as mentiras sobre o Iraque, são partidos de guerra. Donald Trump clamou pelo fim da guerra na Ucrânia, como a sua ridicularização da guerra no Iraque como sendo “a pior decisão” da história dos EUA, são posições políticas atraentes para estadunidenses que estão lutando para sobreviver. Os trabalhadores pobres, mesmo aqueles cujas opções de educação e emprego são limitadas, não estão muito inclinados a preencher as fileiras armadas. Eles têm preocupações muito mais prementes do que um mundo unipolar ou uma guerra contra a Rússia ou a China. O isolacionismo da extrema direita é uma potente arma política.

 Os cafetões da guerra, saltando de fiasco em fiasco, se agarram à quimera da supremacia global dos EUA. A dança macabra não terminará até que nós os responsabilizemos publicamente pelos seus crimes, até que nós peçamos perdão aos que nós prejudicamos e que abandonemos a nossa luxúria pelo poder global incontestável. O dia do ajuste de contas, vital se vamos proteger o que resta da nossa anêmica democracia e refrearmos os apetites da máquina de guerra, só virá quando nós construirmos quando nós construirmos massivas organizações antiguerra que exijam um fim à loucura imperial que ameaça extinguir a vida no planeta.

 

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